CINECLUBE
O dilema da verdade
das redes sociais
Qual o preço da conexão?
Suzana Figs
Suzana Figs [@suzzfigss] é pesquisadora da área da linguagem. Se interessa por cinema, música, literatura, dança, design, saúde, esoterismo, tecnologias e afins.
Se a maioria das pessoas que lidam minimamente todos os dias com a internet das coisas já intuiam o poder das redes sociais para confirmar a existência humana, afinal de contas se você não filmou, fotografou e/ou escreveu nas redes, você não existe e/ou o seu momento não existiu, a premiada produção da Netflix, o documentário "O dilema das redes", dirigido por Jeff Orlowski, que também assina o roteiro juntamente com Davis Coombe e Vickie Curtis, veio para nos mostrar o óbvio: estar conectado tem um preço.
Vivemos em uma era da desinformação e da manipulação da verdade, mas o que é a verdade humana para uma inteligência artificial condicionada pelos algoritmos dos cliques e a quem ela serve?
De forma didática, o doc-ficção inicia com uma frase de Sófocles, considerado o maior poeta trágico da Antiguidade:
"Nada grandioso entra na vida dos mortais
sem uma maldição”
e traz depoimentos reais de especialistas de diversas áreas do mundo tecnológico, como depoimentos de ex-funcionários sobre os bastidores do Facebook, Twitter, Pinterest e Google entre outras plataformas, que foram contratados para desenvolver e potencializar aplicativos com ferramentas de condicionamento psicológico, com o intuito de convencer os usuários a dedicarem seu tempo e atenção de forma imersiva nas redes, onde os cliques dos usuários alimentam algoritmos que se retroalimentam e são compilados em um banco de dados valiosíssimo, configurando o famoso "Capitalismo de Vigilância".
O conceito de Capitalismo de Vigilância foi elaborado por Shoshana Zuboff, da Escola de Administração de Harvard, no qual a experiência humana de liberdade e autonomia são expropriadas e capitalizadas de forma invasiva, parasitária e antiética pelas redes sociais com o intuito de melhor rastrear e manipular os comportamentos dos indivíduos.
Alguns questionamentos pertinentes sãolevantados no documentário como: a ausência de ética nas grandes empresas de tecnologia, lembrando que as empresas são constituídas por pessoas, a falta de regulamentação de como essas empresas usam os dados que compilam, e a escassez de concorrência entre as famosas "big techs"**, que focam apenas no lucro de seus acionistas. Por fim, talvez a principal questão que é evocada pelo documentário seja: qual é a responsabilidade real dessas empresas em criar formas efetivas para controlar a disseminação dos discursos de ódio, notícias falsas, entre outros conteúdos como publicidade infantil, propagandas políticas, invação de privacidade, pedofilia, discursos antidemocráticos, negacionismo científicos entre outras coisas, já que a maioria dos usuários compreendem as redes como algo inocente e ainda agradecem aos céus pela maioria das plataformas serem gratuitas e acabam expondo seus dados privados muitas vezes por escolha ao aceitar participar de uma rede social sem ao menos ler os termos de condições da mesma, porém o documentário faz questão de enfatizar que não existe almoço grátis:
"Se você não está pagando pelo produto, então você é o produto".
"O anti-intelectualismo tem sido uma ameaça constante se insinuando na nossa vida política e cultural, alimentado pela falsa noção de que a democracia significa que "a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento".
Isaac Asimov
Apesar de que no documentário, alguns depoimentos dos próprios ex-funcionários que têm filhos serem taxativos quanto a proibição do uso das plataformas por seus filhos e que eles mesmos enquanto ex-funcionários sofrem, pois sabem que os aplicativos que eles ajudaram a criar tem deixado as pessoas viciadas, ansiosas, depressivas, violentas e com tendências suicidas, o importante é ficar claro que não adianta demonizar as redes, pois também nos beneficiamos com a "invasão de privacidade" e que cedo ou tarde todas as empresas do mundo se tornarão grandes companhias de dados, em inglês "data companies".
Então, quanto mais rápido os conceitos de "big data", conjuntos de dados grandes com um alto nível de complexidade; e "data science", ou Ciência de Dados, área multidisciplinar que aborda e analisa as informações e conceitos complexos da "big data"; forem assimilados pelos usuários, mais os usuários poderão decidir que tipo de dado particular pode ser compartilhado e até que ponto esse compartilhar de dado privado não o prejudicará no futuro, sem a possibilidade de controle de danos, já que não existe mais o direito ao esquecimento, pois a Internet não esquece e não perdoa e com tantas informações deliberadamente compartilhadas, copiadas e roubadas os usuários poderão vir a perder o controle da vida online e consequentemente da vida offline.
"Se o conhecimento pode criar problemas, não é através da ignorância que podemos solucioná-los."
Isaac Asimov
Ou seja, não é o meio, mas sim o conteúdo que deve ser controlado, regulamentado e devidamente esclarecido e compreendido pelos usuários que fornecem diariamente de forma gratuita seus dados privados e fomentam os algoritmos utilizados pelas empresas que compilam esses dados e pela sociedade em geral que precisa criar uma legislação que proteja os usuários e elabore uma nova perspectiva ética que venha fornecer as bases de um novo humanismo, com um ser humano alfabetizado em ciência, tecnologia e humanidades, encontrando um ponto de equilíbrio entre a exposição, a privacidade e a democratização do conhecimento.
"O dilema das redes" (2020) é um filme que vem para desencadear um diálogo pertinente para o momento atual sobre os algoritmos das redes e suas reverberações na sociedade contemporânea e quais as perspectivas de verdades e valores éticos queremos fomentar para o futuro.
Filme: O Dilema das Redes — (The Social
Dilemma, Estados Unidos/2020)
Direção: Jeff Orlowski
Roteiro: Jeff Orlowski, Davis Coombe,
Vickie Curtis
Elenco: Skyler Gisondo, Tristan Harris,
Sophia Hammons, Kara Hayward, Chris
Grundy, Vincent Kartheiser, Catalina
Garayoa, Barbara Gehring.
Duração: 89 min.
Onde assistir: Netflix
**Big Techs são “as principais empresas de tecnologia que têm influência excessiva no mercado e na sociedade". Na Europa as Big Techs mais famosas são chamadas de GAFA, acrônimo de (Google, Amazon, Facebook e Apple) e que quando inclui a Microsoft gera a sigla GAFAM. Via Glossário da PC Magazine. https://www.pcmag.com/encyclopedia/term/big-tech