AFINAÇÕES ACÚSTICAS
Na Hora do Almoço: Belchior
Francisco Moura
Francisco Moura [@chicomouraf] Coordenador do Arte na Biblioteca, arte-educador e estudante de Cinema.
Daniel Freitas
Daniel Sousa Freitas [@daniel_sfreitas97] Formado em Design Gráfico e estudante do curso de Música da UFC. Toca teclado e nas horas vagas trabalha em projetos de produção musical.
Há 47 anos, no ano de 1976, chegava ao mundo o disco que possuía um canto torto feito com faca que cortou o nosso corpo e nossa alma, trazendo assim diversas emoções. Refiro-me ao disco Alucinação, pertencente ao cantor, compositor, artista plástico, produtor, instrumentista e professor, Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, como ele gostava de brincar “o maior nome da mpb”, simplesmente Belchior. Nascido em Sobral em 1946, largou o curso de medicina e chegou a cursar filosofia antes de se aventurar como músico.
Música 03- Como Nossos Pais: Essa música também fez sucesso anteriormente cantada por Elis Regina. Inicialmente o eu-lírico dá alguns conselhos, ele se direciona ao grande amor para dizer que não quer falar de coisas líricas, nem de poemas, nem das canções, quer contar da vida real, das dificuldades da vida. A vida é mais importante que qualquer canto/canção/poema, como bem disse aquele rapaz latioamericano da primeira música” Isso é somente uma canção/ A vida realmente é diferente/ Quer dizer/Ao vivo é muito pior“.
Ainda em tom de aconselhamento lembra da violência da ditadura militar “Por isso, cuidado, meu bem /há perigo na esquina/ eles venceram / e o sinal está fechado pra nós/ que somos jovem. Belchior volta a falar da juventude a qual faz parte, ele sente na ferida viva do coração que apesar do período ruim , vê vindo no vento o cheiro da nova estação. Nesse conselho a juventude, Belchior mais uma vez fala do jovem com cabelo ao vento que na faixa “Velha Roupa Colorida” saiu a rua em grupo reunido. Belchior critica a acomodação dessa “gente jovem reunida” que há algum tempo não sai mais à rua. Essa lembrança da juventude reunida “é o quadro que dói mais” “na parede da memória”
Após essa constatação,o refrão chega carregado de pesar, pois apesar de todos os esforços para “amar e mudar as coisas” foram em vão, e constata-se que “ continuamos vivendo como nossos pais”.
Apesar do desânimo em constatar que as mudanças sociais e culturais que a geração dos anos 60 e 70 tanto sonharam não aconteceram e que a ditadura militar veio para distanciar ainda mais esse sonho, o eu-lírico tenta convencer o interlocutor, dar esperança “que o novo sempre vem”. Mas em seguida cai novamente em lamúrias na estrofe seguinte, quando critica os ídolos, aqueles que inspiraram os ideais e moldaram a consciência da juventude, vivem em seus lares pomposos contando dinheiro, o vil metal. Para encerrar constata novamente no refrão que seguimos vivendo como nossos pais.
Música 04- Sujeito de Sorte: Sujeito de Sorte foi composta em 1973, época em que o cantor já tinha deixado o Ceará e morava no centro de São Paulo, onde experimentava o choque cultural e passava por muitos perrengues para tentar emplacar a carreira de músico, junto de outros músicos cearenses intitulados pela imprensa como o Pessoal do Ceará. Apesar de todos esses percalços, o compositor considera ser um sujeito de sorte, por se sentir “são e salvo e forte”, bem melhor do que muitos outros brasileiros que vivem em condições bem piores que a do cantor.
O compositor canta o esperançar, uma tentativa de manter a esperança, não se entregar às tristezas, às amarguras do passado, afinal “Deus é brasileiro e anda do meu lado / e assim já não posso sofrer no ano passado”. Com o já não poder morrer no ano passado, ele está afirmando a sua disposição de seguir em frente e deixar para trás o que já havia sido superado, visto que só se pode transformar seu presente para que o futuro seja diferente.
Música 05- Como o Diabo Gosta: Essa canção é um enfrentamento direto à ditadura, à censura e à repressão dos anos de chumbo, uma verdadeira conclamação à desobediência civil, “é nunca fazer/ nada que o mestre mandar/ sempre desobedecer / nunca reverenciar.”
Os atos institucionais possibilitaram que os militares dessem um golpe de estado e instituíssem censura prévia a toda manifestação artística no país, acentuando os poderes de tirania do regime militar para um patrulhamento social que perseguiu militantes políticos, artistas e marginalizados.Já na sua primeira estrofe Belchior canta “Não quero regra nem nada” e associa a ditadura ao diabo, a maldade, “tudo tá como o diabo gosta,tá”, e expõe as práticas de censura ao cantar “não vou, eu mesmo / atar minha mão “, expondo o atar de mãos comum aos presos pelo regime e durante as sessões de tortura, como o pau-de-arara.
Para contrapor a perversidade do regime que governa ao agrado do diabo, Belchior, que como curiosidade estudou em colégio de padres, para tratar do tema recorrente do novo, evoca o livro bíblico de Efésios 4:22-24, texto em que Paulo afirma que para viver ensinamentos de Cristo os homens devem despir-se do velho homem e serem renovados no modo de pensar e revestir-se do novo homem, para Belchior vira,” o que transforma o velho no novo/ bendito fruto do povo será” bendito fruto, que por sua vez evoca ao evangelho de Lucas e a Ave Maria, “bendito fruto do vosso ventre, Jesus”. E encerra com:
“e a única forma que pode ser norma / é nenhuma regra ter / é nunca fazer / nada que o mestre mandar / sempre desobedecer / nunca reverenciar.”
Chegamos ao fim do lado A desse disco, o lado B será lançado em breve no site com divulgação nas nossas redes sociais. O disco e as análises que você leu aqui fazem parte do projeto “Na hora do almoço”, que propõe que uma vez ao mês se realize a audição semanal, seguido de comentários a respeito de um álbum marcante da música brasileira. As audições ocorrerão no hall de entrada da Biblioteca Central do Campus do Pici, no horário do almoço.
Alucinação foi o segundo disco do cantor, foi gravado pela PolyGram, através do selo Philips e produzido por Marco Mazzola, que já havia trabalhado com Raul Seixas e Rita Lee. Consta que os diretores da empresa assinaram um contrato de apenas um ano, pois não acreditavam que a voz anasalada e trejeitos notadamente nordestino fosse emplacar no mercado fonográfico, porém o sucesso das composições de Belchior, “Como nossos pais” e “Velha roupa colorida, no aclamado espetáculo “Falso Brilhante”, de Elis Regina, que depois virou LP. O disco contrariando as expectativas teve excelente repercussão na mídia, vendendo ao todo mais de 500 mil cópias, um verdadeiro sucesso na carreira do artista e que o lançou de vez no mercado musical nacional. O canto rasgado, dilacerado, emocionado de Belchior cativara o povo brasileiro.
Belchior buscou abordar questões locais sem deixar de ser universal, questiona os sonhos da sua geração de jovens, a modernidade, a vivência em grandes metrópoles, os conflitos geracionais, as relações migratórias entre o campo e a cidade, críticas à ditadura militar e temas presentes entre a juventude brasileira e sociedade em geral.
O álbum possui 10 faixas, vamos passear por elas?
Música 01- Apenas um rapaz latino-americano: “Fale de sua aldeia e estará falando do mundo” disse Dostoievski, Belchior Já na primeira estrofe mostra suas origens e seu canto universalizado por ser antes de tudo local “ Eu sou apenas um rapaz latinoamericano/ Sem dinheiro no banco sem parentes importante/ E vindo do interior” , em tom político diz que tudo já não é mais tão “divino maravilhoso” , como canta Caetano e Gil e que “tudo muda/ e com toda razão”. O tom político é escrachado na estrofe “mas sei que tudo é proibido” e justo por isso a canção não pode ser mais feita “como se deve/ Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve”, “sons, palavras, são navalhas” não se pode mais” cantar como convém/ sem querer ferir ninguém”. Belchior demonstra que a palavra, a música e a arte em geral tem que confrontar, desvelar a verdade da ditadura, “os horrores que eu lhe digo”, mas não se preocupe “Isso é somente uma canção/ A vida realmente é diferente/Quer dizer/Ao vivo é muito pior), enquanto a arte tenta escrachar e expor a tirania e os assassinatos do regime militar continua sendo só a arte, fere a alma, emociona, mas ao vivo é muito pior.
Música 02- Velha Roupa Colorida: Essa música já tinha estourado com Elis Regina no espetáculo "Falso brilhante", nela Belchior canta um de seus temas recorrentes nessa fase: o “novo”, que apareceu na música concreta “Mote e Glosa que abre seu primeiro álbum “ é o novo é o novo é o novo” “pra você que é muito vivo me diga qual é o novo” . O novo, a nova mudança que em breve vai acontecer, o novo de outrora já não é mais tão novo, “hoje é antigo”, conclamando que “precisamos todos rejuvenescer”. O novo já não tão novo, aparece metaforizado na velha roupa colorida do movimento de contraculltura que saiu a “ rua em grupo reunido/ O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, vejo cartaz”, Belchior nos lembra que “precisamos todos rejuvenescer” No presente a mente, o corpo é diferente/ e o passado é uma roupa que não nos serve mais”.
As referências literárias e musicais comuns na obra de Belchior aparecem claramente quando o compositor faz menção a Edgar Alan Poe em seu poema, “O corvo” - The Raven. Belchior tal qual Poe pergunta ao passarinho: “,Assum preto, pássaro preto, Black bird o que se faz?”. É interessante observar que o compositor traz o assum preto, pássaro preto do sertão, da caatinga, cantado por Luiz Gonzaga e black bird cantada pelos Beatles associado ao corvo de Poe.
“Como Poe, poeta louco americano Eu pergunto ao passarinho Assum preto, pássaro preto, Black bird o que se faz? Raven, never, raven, never, never, never, never, never, raven Assum preto, pássaro preto, black bird, me responde: Tudo já ficou atrás Raven, never, never, never, never, never, never, raven Black bird, assum preto, pássaro preto, me responde: O passado nunca mais”
O corvo do poema de Poe quando perguntado fala Nunca mais - nevermore, na música de Belchior o pássaro diz “ O passado nunca mais”, antes de repetir por três vezes o conselho ao amigo que ainda não percebeu “que precisamos todos rejuvenescer”