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Hilda Hilst e o existir enquanto dúvida

  Hilda foi a principal responsável por me ensinar a duvidar, a destrinchar sentimentos e temores, emoções e desejos, em fragmentos ínfimos de uma realidade completamente mesclada à subjetividade de existirmos enquanto indivíduo, matéria física, em um Mundo no qual as principais transformações se dão na imaterialidade, no intangível e no inalcançável. Dentro de nós, e não fora. Sendo precisamente essa busca pelo desconhecido, por algo não compreendido tanto em nós como no Outro, a responsável por tornar a escrita e as reflexões de Hilda tão densas e marcantes. Há sempre um fluxo de perguntas e de deduções que se retroalimentam e se transmutam em narrativas completamente distintas e desviantes, assim como são os nossos pensamentos.

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  Essa mescla do abstrato com o real, do corpo com a subjetividade, existe em sua melhor e mais ampla forma através de um texto híbrido que materializa versos entre verbos, que embaralha falas entre narrações e cria personas e interlocutores não nomeados, de forma a nunca termos certeza do emissor do discurso até nos rendermos apenas ao conteúdo, ao que é dito que reverbera tanto dentro de nós, porque constantemente nos perdemos, tanto aqui fora como dentro das palavras de Hilda.

  Não há problema algum em nos perdermos contanto que continuemos a caminhar, a trilhar linhas inteiras sem intervalos, fim e reticências... Até nos depararmos com uma figura desconhecida a nos indagar sobre a Vida, sobre a Morte e sobre Deus. A nos lançar em um mar revolto de perguntas frenéticas que estranhamente mais nos desvelam do que nos atordoam, nos acariciam até vir o soco que nos desnorteia e nos deixa à deriva de uma existência humana que é em si absurda, incoerente, e estupidamente baseada em ficções ancoradas no surreal cuja única serventia é dar continuidade às nossas vidas e nos livrar da loucura que seria se subitamente nos tornássemos lúcidos.

 

A vida é em si surreal

  Nascer e já morrer, nascer e poder crescer, decorar fórmulas sociais e regras de convivência, e quando não, ser alcunhado incapaz condenado ao isolamento, dar continuidade ao fetiche de uma família que nunca existiu enquanto laço e união, ser explorado em trabalhos sub-remunerados e engolindo discursos de que o conquistar só depende da vontade, não da sua, claro, mas de quem importa. Ouvir isso foi um soco? Então… Hilda sempre teve muita confiança no que escrevia e defendia que seu trabalho era precioso demais para ser lido no bonde, no ônibus e no carro, e não podia ser diferente já que ela lia compulsivamente de nove a doze horas por dia sobre os mais diversos assuntos, de filosofia alemã à física quântica.

  Sempre refletindo em seus textos esse estado de dúvida e de questionamentos latentes aos quais ela nunca abriu mão em vida, como se o texto te puxasse desesperadamente para dialogar e a refletir com ele, em uma relação dúbia de risos fora de hora e socos certeiros a te desestabilizar.

  Tremer nas bases, compartilhar de uma solidão intrínseca à nossa existência. Amedrontar pelo medo de desaparecer e sucumbir à loucura da lucidez. Hilda tinha medo da loucura que acometera o seu pai a encontrasse, mas também flertava com a loucura ficcionalizada pelo mundo ao se permitir vender Lori Lamby nas entrevistas como uma pornografia para crianças divertidíssima de se ler, o que de fato ela o é, mas também “repugnante, um lixo, uma droga que os editores gostam muito de vender”.

  A mesma crítica que aparece em Contos de Escárnio quando Crasso, nosso narrador, resolve escrever um livro porque ao longo da sua vida tem lido tanto lixo que resolve escrever o seu próprio, já que todo mundo se diz escritor hoje em dia e são aplaudidos por outros como tal.

  Hilda queria acima de tudo ser lida, dizia ser a ambição máxima de um escritor, e se não o estava conseguindo com a sua prosa híbrida de poesia em busca do desconhecido, do incomensurável, da face de Deus, então conseguiria ao escrever a sua trilogia pornógrafa. Agora, o questionamento que fica aqui está no ato, não mais na palavra.

Que abjeta é a situação em que se precisa prostituir a sua liberdade intelectual enquanto artista para sobreviver e se manter vivo? Se os livros, poemas e peças foram os únicos filhos biológicos que Hilda deixou em vida, não parece óbvio a metáfora que Lori Lamby representa ao ser vendida pelos seus pais por dinheiro? O que significa dizer obscenidades quando a verdadeira natureza do obsceno é a vontade de converter?

  Hilda foi obscena por toda a vida ao desnudar a vulnerabilidade da condição humana, ao mostrar como as bases em que nos apoiamos são tão frágeis diante de simples perguntas e indagações que se manterão desconhecidas por maior que seja a nossa sede de conhecimento e desejo pela iluminação. Por maiores que sejam as nossas dúvidas, o mais difícil de se encarar é que provavelmente no fim não iremos a lugar algum após proferi-las e as jogarmos ao vento. “Ainda que se mova o trem, tu não te moves de ti”. É impossível fugirmos de quem somos e de quem desejamos ser. Então simplesmente aguentamos até onde as nossas ficções nos permitem aguentar. Suportamos até quando não sabemos o motivo para suportar.

Sinopse: Lori é uma menina de oito anos que, incentivada por seus pais, se prostitui e escreve tudo em um diário. Obsceno e impactante.

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Afinal, não é assim com todos? Se soubéssemos pelo o que procuramos, não passaríamos uma vida inteira tentando encontrar, mas mesmo se o encontrássemos, ainda assim não nos sentiríamos insatisfeitos?

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Caio Victor Brito

*Caio Victor Brito Graduado em Cinema pela UFC, mestrando em Artes pela UFC, escritor, montador, artista digital 3D e pesquisador de novas mídias e realidades mistas (VR, AR, XR). 

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