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ESCRITA LIVRE

Bate na Boca, Menino!

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Rebeka Lúcio

Rebeka Lúcio [@rebekalucio] Atriz-pesquisadora, apresentadora, comunicadora, produtora cultural, viajante, contadora de histórias. Mestre em Artes.

  Você já parou para observar como palavrão, sociedade e estigma estão entrelaçados cotidianamente? Que uso temos do palavrão? No nosso dia a dia, é comum a naturalização das palavras e o uso social do xingamento. Mas você já parou para observar que palavras ou expressões costuma usar na hora da raiva?

  Pare e Pense: Será que somos preconceituosos? Que estigmas e preconceitos estão impregnados em nosso discurso? O nosso discurso está povoado por outros discursos, somos, afinal, uma colcha de retalhos, uma costura de memórias e vivências.

  Nesse sentido, é interessante notar que diz o senso comum que “educação vem de berço”, afinal, algumas pessoas nascem em “berço de ouro” e outras não. "De ouro" significa na frase e na vida que a pessoa nasceu bem de vida, em uma família abastada e, nesse sentido, teria melhores condições de vida e, provavelmente, seria melhor educada.

  Contudo, se educação vem de berço, o preconceito, provavelmente, encontra-se imbuído nesse combo. Afinal, é em casa que aprendemos muitos valores, vamos nos formatando gente e ensaiando passos para dançar no mundo. É, como dizem, “filho de peixe, peixinho é” e “costume de casa vai à praça.”

  Você já deve ter visto um ou outro pai ensinando o filho a falar palavrão porque acha bonitinho, mas um dia o menino cresce, a palavra que vive no mundo dos aumentativos já se incorporou ao vocabulário e fica mais difícil controlar o verbo só com um “bate na boca, menino!”

  Nesse jogo cheio de disse me disse, muitas vezes, o aprendizado também se dá por reprodução. Já ouviu falar no “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço?” é o que mais acontece. O menino escuta, aprende, repete e é repreendido, mas o proibido sempre tem um sabor especial. Por isso, quando o palavrão é apresentado na rua por um amigo que aprendeu por aí e agora repete com tempero proibido, também é fácil reverberar.

  O fato é que é difícil definir ao certo quando aprendemos a falar palavrão e mesmo a origem dessas palavras proibidas são indefinidas, mas que elas existem e andam soltas por aí, isso sabemos. Mas quem são elas?

  Muitas são as palavras bastardas que andam soltas por aí, divagando entre uma boca e outra, passando de gente grande para gente pequena, sendo perduradas por gerações. Como foi que elas surgiram, afinal?

  Ao longo de uma cadeira de Antropologia Cultural em que fui discente na UFC, lemos e discutimos textos que nos permitiram pensar minorias e perceber coisas que passam despercebidas. As coisas estão tão coisadas nesse mundo, onde a gente aperta para perceber e descoisar?

  O fato é que a construção histórica e social desse povo que hoje chamamos de brasileiro foi sedimentada em meio a enraizamentos repletos de estigmas, que ainda hoje reverberam e, às vezes, a gente nem percebe.

  Lendo autores como Mello, Grosso e Uziel percebemos a relação e o estigma da escola com os filhos de lésbicas e gays; discutindo Guimarães percebemos as questões presentes entre classes, raças e democracias; Nogueira, por sua vez, nos propiciou um estudo das relações sociais nesse mundo que é muito mais do que bicolor; Birman trouxe à tona entendimentos sobre umbanda; Sodré nos fez pensar nagô; Heilborn provocou o estudo sobre sexualidade; Marques apontou o homoerotismo e suas relações com o silêncio; Bento incitou o olhar sobre a violência de gênero; e Neto historicizou a origem do samba mostrando como o mundo muda, mas também pode permanecer o mesmo.

  Nesse mix de leituras e pensamentos, o quanto o mundo é provocador e ao mesmo tempo adormecido?

  O samba, por exemplo, já foi coisa vergonhosa e hoje se insere nas rodas mais gourmetizadas. O funk já foi coisa de favela, mas cada vez mais tem se gourmetizado e buscado aspirações. Dizer “isso é coisa de preto” já foi intensamente pejorativo, mas o empoderamento do negro tem permitido repensar expressões e transformar palavras. O homossexual, nesse ínterim, já foi muito mais abjeto e escuso, mas cada vez mais tem se assumido e colorido o mundo.

  A mulher, por sua vez, já teve muitas conquistas desde a queima dos sutiãs, mas nem por isso está a salvo da sociedade machista e patriarcal que ainda se acha no direito de decidir a legalização ou não de um aborto, por exemplo. O que custa entender o que significa “meu corpo, minhas regras”? Nessa sociedade de regras desregradas mesmo os mais politizados tendem a repetir expressões e xingamentos naturalizando o que não pode ser considerado “mimimi”.

  Você já parou para pensar por que o que é ruim é chamado de negro? Ou você nem percebeu que já falou magia negra, passado negro, humor negro, lista negra, peste negra? Tudo isso denigre a imagem do negro. Opa, e o verbo "denegrir" também não indica coisa boa, hem? Mas, calma, que temos que esclarecer, clarear os fatos. Por que é clareando que as coisas ficam boas? Há quem prefira a noite ao dia.

  Quando se fala de afrodescendência inúmeros são os casos de preconceito e, sim, a escravidão tem a ver com tudo isso. Por que é mesmo que uma raça é superior a outra? Por que uma cultura é pecaminosa e suas crenças devem ser abominadas? A dívida é histórica.

  É preciso notar que a representatividade negra avançou, mas ainda há muito a fazer. O caminho é contínuo e é preciso sim que haja super-heróis negros, princesas negras e personagens globais que não estejam atrás dos aventais. O caminho é longo.

  Xingar um negro de macaco é chamá-lo de primata e primitivo mesmo é alegar superioridade em pleno século XXI. Falando nisso, sabe por que se diz que os nobres têm sangue azul? Porque na Espanha do século 6, os ricos não tinham trabalho braçal, isto é, os poderosos não costumavam trabalhar no campo.

  Vivendo à sombra, enquanto exploravam o trabalho alheio - e qualquer semelhança não é mera coincidência - os ricos costumavam ser tão alvos que veias azuladas lhes saltavam da pele, eis aí a origem da expressão.

  E baixando o calão deste ensaio - porque, às vezes, é preciso rasgar o verbo - vamos observar o significado social de alguns palavrões? Afinal, foi isso que ensaiei escrever no início dessa reflexão, que já quase chega ao fim. Sendo essa reflexão para maiores de 18 anos, você pode até tapar os ouvidos, mas, por favor, não tape os olhos, de vez em sempre é melhor ativar os sentidos porque só assim uma mudança engatinha.

  Por esse viés, chamar alguém de “gay”, “viado” ou, no cearês, de “baitola” é hábito por quê? Porque o homossexual sofre ainda muito preconceito e, sim, por alguns é até visto como doente, passível de cura. Nesse sentido, é comum o uso do universo homoafetivo como xingamento, por meio de expressões consideradas pejorativas, que denotariam passividade e inferioridade. Mas como na vida as pessoas seguem vivendo e aprendendo, já ouvi respostas que diziam: “Sou sim, inclusive adoro!”, quando atacadas. Afinal, que mal tem?

  E qual seria a problematização, nesse contexto, dos xingamentos sexualizados, já que o sexo é algo naturalmente presente na rotina do brasileiro? A sociedade conservadora faz sexo, porém ainda trata o ato sexual como algo pecaminoso e sujo, que só seria permitido após o matrimônio. Pura hipocrisia social (e sexual). Muitas expressões estão ligadas ainda ao poder e à dominação, podendo estar relacionadas também ao estupro, ao sexo sem consentimento. Esse, sim, algo, se não pecaminoso (mas acredito que sim), criminoso. Por isso, não é nada sensato e muito menos politizado um político desejar que uma política, seja estuprada.

  Mas quando se trata do gênero feminino, não faltam xingamentos. A liberdade sexual da mulher pode até ter sido conquistada na teoria, mas na prática ainda é muito contestada. Muitos são os relacionamentos abusivos e os índices de feminicídio.

  Em palavras sinônimas, também é comum ouvir referência à "meretriz que deu a luz". A meretriz pariu mais um excluído social? Expressões costumeiras carregadas de sentidos que refletem um filho bastardo, o filho da mulher julgada como "rodada". De "meretriz", aliás, muitas mulheres solteiras ou divorciadas já foram xingadas. E mulher sem marido só pode ser o quê? Livre para fazer suas escolhas.

  É preciso notar, por fim, que os xingamentos fálicos, que exaltam o sexo masculino não são incomuns no vocabulário brasileiro e, inclusive, são usados muitas vezes com uma entonação positiva, para comemorar algo, até! Já quando se trata do feminino... Nas vezes que ouvi, sempre tinham um tom negativo. Coincidência? Talvez, seja preciso repensar palavras e em vez de dizer aquele sinônimo pouco erudito de "meretriz que deu a luz" largar um “pai que fugiu” da próxima vez.

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