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Poema

LUGAR DE POESIA

Argentina Castro e a Poesia Como Alimento Diário

  Acordei e fui levada até a cozinha pelo cheiro do café da minha mãe. Beijei-lhe a cabeça e pedi benção, como de costume. Ela não respondeu e eu não insisti. Na sala, a TV com as velhas notícias de violências, desigualdades e injustiças.Minha mãe balbuciava:

- Tanta morte, parece que nada melhorou, o mundo continua o mesmo.

Depois da pandemia ela vivia numa tristeza de dar dó. Fui até ela, abracei e disse:

-Oque aconteceu?

Seu silêncio foi quebrado por vozes que lhe chamavam no portão.

- Já vai!- gritei.

Ela na frente e eu atrás, resmungando, fomos até lá fora. Eu não acreditava que àquela hora da manhã estivéssemos recebendo visitas. Ela abriu o portão e lá estavam alguns familiares vestindo camisas com minha foto estampada e uma frase que dizia: missa de um ano. Saudades eternas.

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  O texto que você acabou de ler faz parte do livro de contos ‘’Bomba D’água Coração” (Editora Mirada, 2022) de Argentina Castro, escritora fortalezense, mestre em antropologia e idealizadora da Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias. A autora de poemas, contos e crônicas publicou, esse ano, seu segundo livro: "Poesia, O Pão Nosso de Cada Dia!" (Editora Mirada, 2023) voltado ao público infantil e faz um chamado:

 

“Para cada coisa que, na vida, você passar Faça uma poesia, dessas de rimar!”

 

  Conversei com a artista sobre o novo projeto, que tive a honra de ilustrar, e sobre suas perspectivas de infância, poesia e leitura. Confira a seguir a entrevista:

  Você é uma das articuladoras e gestoras da Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias, na qual são promovidas diversas ações de arte e cultura para crianças do grande Pici e especialmente, da Comunidade do Papoco. Apesar de certa familiaridade com o público infantil, é a sua primeira publicação voltada a ele. A escrita de um livro infantil foi um desafio? Como surgiu "Poesia, O Pão Nosso de Cada Dia!"?

  Nunca pensei em escrever um livro infantil até que o texto base para o livro fosse visto por Vinicius Ferraz, escritor de literatura infantil. O texto era uma prosa poética e ele disse: “por que não faz desse texto um livro infantil?” Ao que eu respondi: “sério?” Enfim, foi assim dialogando com um escritor experiente, colocando ele em contato com meu texto em uma aula onde ele era professor e eu uma escritora convidada através de um de seus alunos,Caio Lucas.

  Então, eu sou uma sujeita de sorte,recebo bons convites e nesses convites sou surpreendida pela visão de quem me lê, ou me escuta. O resto foi mexer no texto, tornar ele mais simples, mas nem por isso complexo, afinal as crianças são simples só na superfície. Por dentro, assim como os adultos, são um universo, muitas nuances, peculiaridades, subjetividades. Não são seres sem percepções da realidade como muitos adultos acham. Pelo contrário, são seres sensíveis do mundo ao seu redor com toda capacidade de sentir o ônus e o bônus da vida.O livro é um chamado à leveza no dia a dia, no cotidiano. É um convite e uma tentativa simples de explicação de que o instante poético está no ar, a gente precisa tá atento às coisas, as pessoas, as situações, a natureza que, apesar de tudo, ainda nos cerca, as cores, as formas de fazer e de ser das pessoas e da vida.

  Então o livro tem essa perspectiva de pensar a poesia como alimento (o pão) para nossa alma. Um alimento que assim como o pão feito de trigo faz parte do café da manhã de muitas famílias, principalmente das famílias mais empobrecidas, mas não só. E não posso deixar de dizer que nem o pão, muitas e muitas famílias e pessoas sequer têm acesso tamanha a miséria que assola esse país. Então escrever esse livro foi uma coisa simples, mas também complexa e portanto, desafiante.

  O livro faz um convite para que os leitores, crianças, jovens e adolescentes, façam a própria poesia, inclusive há um espaço que permite a interação e a escrita dentro dele. O seu interesse pela literatura surgiu através de um “convite” na infância também? Como a poesia chegou inicialmente para você?

  Já me fiz essa pergunta e descobri no emaranhado de possibilidades de resposta que não foi um livro que me fez o convite para a poesia, não tinha acesso a esse tipo de livro na infância, o acesso era restrito apenas aos livros escolares. Mas o convite veio de um instante poético. Lembro como se fosse hoje que um dia vi o dia amanhecer com meu pai. Ele acordava cedo e teve um dia que eu também. Ficamos sentados em uma cadeira de balanço (eu acho) na frente da casa vendo o dia amanhecer.

  A cor do céu, os passarinhos cantando, o vento frio, o afeto e proteção do meu pai até hoje vivem em mim como a primeira poesia da minha vida. Tudo ali era bonito, forte e me levava a um lugar emocional raro e pouco comum para a minha realidade da época. Talvez com um suporte e ferramentas necessárias eu teria escrito um poema ali. Por que eu estava emocionalmente envolvida com o todo.

  Aquele momento me deixou levitar, sair de mim, entrar numa realidade sensorial, sensível, espiritual e humana muito, muito especial.Mas tudo isso é com os olhos de hoje que vejo. À época daquele momento eu só sabia que era um momento belo e feliz e é assim que me sinto quando leio poesia.

  Na juventude conheci Florbela Espanca e aqueles poemas de alguma forma dialogavam comigo. Depois fui conhecendo outros formatos, outros e outras poetas. Vendo poesia em fotografias, em arte colagem, em sorrisos, em lágrimas também, em muita coisa ao meu redor. Acho que a poesia é fruto de uma atenção especial que você dá às coisas, é fruto de um pensamento crítico e sensível, é fruto de sentimentos diante da vida e de suas nuances. A poesia chegou pra mim a partir da observação da realidade, na relação com o outro, na abertura para a força da natureza. A poesia nasce dos sentidos e do sentir. Já fiz poesia dentro de um ônibus que passava na frente de uma padaria e de lá saia um cheiro ma-ra-vi-lho-so de bolo recém saído do forno. Tem coisa mais cheirosa? Tem, eu sei que tem, mas aquele cheiro dentro de um ônibus cedinho da manhã me despertou do sono e da preguiça de viver. Me deu energia, me deixou bem tão bem que o pensamento foi me enviando palavras,frases,texto, poema.

  Fiz um poema para o bolo. E é isso, a poesia é para o bolo, para o voto, para o ódio, para amor, para fome, para o tesão, para o cachorro, para o céu, para desigualdade social… Enfim, a poesia é para a gente falar de tudo de uma forma menos seca e não comum. É isso,talvez seja isso, ou não.Quem é que sabe?

  O livro também foi disponibilizado em audiobook e vídeo, possibilitando novos meios de acessibilidade e leitura, de forma digital. O que você pensa sobre a tecnologia e as novas maneiras de produção e disseminação da literatura?

  Usar a tecnologia a nosso favor, de forma positiva e, no caso da literatura, de forma inclusiva é uma grande alegria. Estamos falando de direitos, principalmente. Toda criança tem direito ao livro, à leitura, à literatura. Desejar e possibilitar que crianças com problemas de visão, por exemplo, possam acessar um livro, ouvir poesia, pensar sobre a poesia, criarimagens mentais sobre a poesia é um caminho rumo à garantia mínima que seja desse direito. Acho que os meios virtuais, a forma virtual de existência também estão aí para que a gente possa criar, produzir, incluir culturalmente, fazer circular belezas. No entanto, é preciso refletir que para isso acontecer é necessário garantir que as pessoas tenham o direito digital garantido. Então esse livro infantil é um livro que provoca, que convoca, que informa que há crianças com visão reduzida ou totalmente sem visão que precisam acessarlivros, aprender e, para isso, o direito digital é uma necessidade que não só fortalece a autonomia dessas crianças, mas também garante aprendizagens, o lúdico, o inventivo, o fantasioso através da subjetividade acionada através de um áudio que narra uma história, de um áudio que recita uma poesia. Então nessa sociedade altamente tecnológica que estamos vivendo, não faz sentido a fome, não faz sentido que uma criança não tenha livros em casa, um computador com internet. Não faz sentido e é criminoso tudo que citei.Uma criança que não enxerga também tem que ter o seu direito cultural garantido e isso passa pelo direito digitaltambém.

  A sua infância ou até mesmo a vivência com as crianças assistidas pela "Papoco de Ideias" influenciaram a escrita do "Poesia, O Pão Nosso de Cada Dia!"?

  Entre a minha infância e a infância das crianças da Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias há muitas semelhanças. Quando idealizei e criei a "Papoco" foi pautada num sentimento muito forte de injustiça,raiva e revolta. Não era justo que a criança que fui , no final dos anos 70 e início dos 80, e as crianças de 2016 (ano que nasceu a Papoco) tivessem a mesma vivência da ausência de tantos direitos. E foi acessando minimamente meus direitos culturais na juventude que pude perceber que eu poderia e tinha o direito de me desenvolver melhor na vida, principalmente intelectualmente e sensivelmente, falando. Todas essas lacunas na vida de uma criança geram muita insegurança, medos, tristezas e mais à frente durante a adolescência/juventude começam a surgir as questões mais existenciais. Os porquês se complexificam e as dores também. E foi na escrita que fui expressando tudo o que sinto e penso, mas isso já na fase adulta. Ou seja, eu arrasto a menina que fui, dentro de mim. E é assim com todo mundo. Mas nem todo mundo talvez reflita sobre o que faltou à sua criança e é necessário atendê-la mesmo quando ela cresce e fica adulta.Nas mesmas águas que se banham as crianças da Papoco, a minha criança se banha. Isso me deixa feliz em dose dupla. Então, isso para mim é um fazer poético. Tornar, junto com minha família, amigos e apoiadores, a vida de crianças empobrecidas menos cinza, dura e feia, em uma vida mais lúdica, criativa, brincante, musical, teatral, dançante, literária, cinematográfica, fotográfica, circense é fazer poesia pro mundo. E eu não faço essa poesia sozinha. Sou totalmente influenciada pela minha criança e pelas crianças ao meu redor…o pão deve ser nosso e a poesia também e, juntos ou separados, precisam existirtodos os dias.

  Por último, quais sentimentos você gostaria de despertar nos leitores?

  Sentimento de admiração e curiosidade pela poesia da vida. Sentimento de leveza, de olhar para o universo ao redor com mais atenção, sensibilidade e encanto. Sentimento de esperança, de que nem tudo está perdido na rigidez do dia a dia, mas há uma fagulha e essa fagulha, essa centelha precisa estar acesa através de nossos sentidos e, dentro de nós, seja criança, seja adulto.

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Ezequiel Bernardes

Ezequiel Bernardes, também chamado de Zéq, [@akazeq], é ilustrador, articulador voluntário na Biblioteca Comunitária Papoco de ideias, graduando em Teatro pela UFC e apaixonado por música pop.

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