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ALÉM DOS MUROS

UMA BIBLIOTECA COMUNITÁRIA COMO FRUTO DE UM PAPOCO DE IDEIAS!

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Argentina Castro

Argentina Castro [@argentinna.castro] Aprendiz de escritora, Articolagista, Antropóloga, Fundadora da [@papocodeideias].

      Às vezes, a vida pode nos apontar caminhos a partir do que nos dói. Sabe aquela angústia sempre presente no meio dos peitos? Pois é, um peito angustiado pode ser um fomenta(dor) não só de um caos interno, mas de uma pequena rebelião do lado de fora da caixa torácica.

      E foi assim que surgiu a Papoco. Ela surgiu quando fiz, por dentro, uma imersão profunda buscando resposta para as seguintes perguntas: O que posso fazer para melhorar o lugar onde moro? O que eu tenho que pode ser compartilhado com meus vizinhos? Que retorno eu posso dar para a sociedade que pagou pelos meus estudos de graduação e pós-graduação em universidades públicas (estadual e federal)? Como contribuir para pensar um outro bairro possível? Até quando vou ficar de braços cruzados vendo meus vizinhos, jovens, virando estatística nos índices de violência na quinta maior cidade do país?

      Antes, porém, de olhar ao meu redor no presente, faço o exercício mental e emocional de ir até a minha infância e ver, a mim e meus irmãos e vizinhos de então, indo para o nosso único evento/espaço com cara de lugar que nos garantia algum direito. E isso só acontecia uma vez por ano, no mês de julho.

      Eu estou falando da colônia de férias da Universidade Federal do Ceará que acontecia no Campus do Pici, nos anos de 1980. Foi lá que tomei meus primeiros banhos de piscina, fui ao zoológico, pratiquei esportes, conheci e brinquei com dezenas e dezenas de outras crianças da redondeza, que eu não conhecia em sua maioria, mas que faziam parte do meu dia a dia por comungarmos da realidade difícil de crianças pobres. Era lá, na verdade era bem aqui, na frente da minha casa.

      Era só atravessar a rua Piauí e a cerca que separava a universidade dos nossos corpos infantis, que tínhamos garantido, uma vez por ano, o direito ao lazer usufruído dentro dos espaços da universidade e também o direito à cidade, já que fazíamos alguns passeios. Cruzávamos os inesquecíveis e gigantescos pés de eucalipto que balançavam, para lá e pra cá e que pareciam que iam cair de tão finos e longos. Olhando da minha casa para a UFC, os eucaliptos pareciam portais. Na volta para casa, úmidos e com cheiro do cloro da piscina na pele, enchíamos as mãos pequenas com as folhas que caiam ao chão e levávamos para nossa mãe fazer os benditos “cozimentos” para as gripes e resfriados.

      Aquele cheirinho de eucalipto também se misturava com o gosto da semente de “morta fome” que fazíamos questão de dar uns bons pulos para pegar maduras e botar na boca. Essas eram as nossas únicas travessias numa infância permeada pela pobreza material...

      De lá para cá, não se ouviu mais falar em colônia de férias por essas bandas. A piscina da universidade nunca esteve tão restrita. Somente seus acadêmicos fazem uso e alguns poucos moradores.

      Que pena! Que pena?? Que vergonha, isso sim! Quantos atletas moram aqui do lado e estão com seus corpos atrofiados pelo não acesso aos seus direitos.

      Quantas mentes sendo nutridas por coisas que não engrandecem ninguém, e isso nas barbas da universidade? E ela bem aqui na nossa cara se fazendo de doida, dando uma de João sem braço, fazendo um desserviço a quem está ao alcance de seus olhos e mãos. Se quando eu era criança o que ela nos “dava” já era pouco, agora, esse pouco já nem existe mais. E foi por causa dessa e outras situações que fiquei cá com meus botões dizendo a mim mesma: UFC, nós vamos invadir sua praia!

      E sempre que estou papeando com as crianças eu digo: Gente, aquele muro ali da universidade foi feito para a gente ultrapassar. E para isso, tínhamos livros, espaço, crianças (aqui em casa nunca faltou) e a certeza de que o acesso aos direitos melhora a vida das pessoas. Pensei que o livro podia ser o caminho a nos levar para muitos outros. Uma irmã mais velha formada em biblioteconomia nutria o sonho de uma biblioteca em casa. O que fizemos, todos dessa família, foi unir coisas que gostávamos, que tínhamos e que acreditávamos. Assim nasceu a Papoco de Ideias.

    Nasceu como uma aposta, no meio de sentimentos difíceis (raiva, medo, revolta, tristeza, insegurança e angústia). Começamos no carnaval de 2016 com alguns poucos livros enfileirados no parapeito da área de nossa casa e um lençol estendido no chão pra meninada sentar. Fizemos um minibaile com menos de dez crianças, algumas da família. E ali, de forma inconsciente, misturamos alegria e leitura, festa e livros. Carnavalizamos o ato de ler, sambamos na cara do prefeito e do governador e também do reitor que não sabem nem que cor são nossos olhos, que dirá a dos nossos confetes e das nossas serpentinas. Até hoje eles não sabem. Na verdade, eles não sabem de nada daquilo mora dentro e fora de nós.

      Atrevida, fui até a sala do então Secretário adjunto de cultura do Estado (que eu havia conhecido em uma conferência de juventude) e ele me enviou, através do sistema estadual de bibliotecas, quinhentos livros, vinte cadeiras plásticas e um bebedouro. Na sequência ou foi concomitantemente, não lembro ao certo, soube através de uma amiga, de uma rede de leituras existente na cidade. Fomos atrás e fizemos parte.

      No processo, nos percebemos incompatíveis ideológica e politicamente. A Papoco saiu da rede e seguimos no embalo bom de ser livre, autônoma, autogerida e comprometidas mais do que nunca e, de verdade, com a comunidade.

     Embora fazendo parte de um sistema que se preocupa mais com números do que com olhos que brilham pelo afeto, o dinheiro nunca foi o que nos manteve nessa empreitada. Ele nos faz falta? Sim, demais! Mas não foi a ausência dele que nos fez ficar paradas, de braços cruzados fazendo de conta que não temos responsabilidade nenhuma com o que acontece ao nosso redor. Temos consciência de classe, sabemos o nosso lugar e entendemos que sem luta, nada se transforma. Fizemos quatro anos em fevereiro de 2020 e por aqui já passou umas cem crianças, ou mais. Mas atendemos, com constância, mais da metade desse número.

      No correr dos quase mil quatrocentos e sessenta dias de existência, temos garantido, minimamente que seja, alguns direitos (principalmente nos fins de semana) para faixa etária de 1 a 18 anos de idade. Os diretos são: o direito ao lazer, à educação, à cultura, à segurança, ao direito a cidade, ao alimento.

     Trabalhamos com oficinas diversas. Afinal, tudo nos interessa. Fazemos o Cine Papoco uma vez por mês no meio da rua, emprestamos livros, mediamos leituras dos livros e da vida. Ocasionalmente recebemos doação de frutas e verduras e redistribuímos para as crianças mais frequentes.

      Isso é direito à alimentação (saudável). As crianças já conheceram, através da biblioteca, equipamentos culturais como o Cine São Luiz, a Caixa Cultural, o Centro Cultural BNB, o Museu do Ceará, o Centro de Eventos, a Vila das Artes.

     Aqui já tiveram aulas/oficinas de práticas percussivas, práticas teatrais, dança, teatro de sombras, composteira, poesia, fanzine, artcolagem, cordel, palhaçaria, livro artesanal, de árvore de natal reciclável, mamulengo, fotografia, cinema, libras, pipa, estêncil.

      Temos nos aproximado das escolas em que as crianças estudam e, no período de matricula, temos tentado nos aproximar mais ainda de alguns responsáveis pelas crianças para garantir que nenhuma fique sem ir para a escola por um descaso familiar ou escolar. Fazemos campanhas para arrecadar brinquedos, livros e material escolar ao longo do ano e em torno do calendário (dia das crianças, natal, volta às aulas).

       Em 2020, vamos fortalecer parcerias que iniciaram no fim de 2019 para garantir qualidade e diversidade dos saberes a serem trocados, inclusive de geração de renda, empreendedorismo, violência doméstica, autocuidado, empoderamento, questões étnicas, saúde preventiva para os jovens, acompanhamento psicopedagógico para as crianças e adolescentes.

      Queremos muito esse ano discutir e fazer e ou intensificar atividades sobre gênero, raça, violência, meio ambiente.

    Queremos que quem chegue aqui saia, de alguma forma, com algo novo martelando na cabeça, inquietando o juízo. E queremos que nos deixe com novas questões também. É uma troca! Se engana quem pensa que pessoas comuns, pouco escolarizadas ou até mesmo as crianças, não tem o que dizer ou não sabem das coisas.

      Queremos tratar aqui de tudo aquilo que nos adoece como indivíduos e como coletividade. Que assuntos são esses? O que nos fere por dentro e por fora, que nos mata, que nos oprime, que nos constrange, que faz com que nos vejamos como coisa menor e sem importância? Que a Papoco de Ideias seja um lugar para gente se melhorar e melhorar o mundo. Lugar de fala e de escuta, de encorajamento para perder o medo de crescer num mundo tão difícil, mundo esse que trata pobre como se fosse bicho quando nem os bichos merecem um tratamento ruim.

     Talvez, a gente não consiga nada disso, mas pelo menos uma horazinha que uma criança passa aqui dentro que seja um lugar de ressignificação de sentimentos, de pensamentos, de ação.

     Quando estão aqui que se sintam seguras dos adultos cruéis, se sintam afetadas pelo afeto, fortalecidas emocionalmente pela natureza que abriga essa casa. Enfim, nossa meta também para 2020 é nos aproximar mais das famílias, precisamente das mães, já que a realidade aponta para uma grandiosa ausência paterna não só nos registros de nascimento, mas no cotidiano.

    E o cotidiano não é formado somente pela nossa vivência prática, mas também por nossa vivência subjetiva. E talvez seja nisso que a Papoco precisa cuidar de forma mais imediata em cada criança que chega.

    A gente quer contribuir com os sonhos de cada um. Sonhar, dentro de um universo de dificuldades e impossibilidades, é a primeira coisa que nos tiram. Eu digo isso com toda propriedade. Não à toa eu só entrei na universidade aos vinte e sete anos de idade. Mas essas crianças não precisam demorar tanto para que se sintam capazes. Eu e minha família estamos aqui para cobrar essa conta. Por eles e por nós, essa conta vai ter que bater. A ferro e a fogo, ela vai bater!

    Eu sei que temos limites e que esbarramos infelizmente e, muitas vezes, na família que também se formou dentro de um contexto excludente, mas se essas crianças crescerem sendo acompanhadas por nós, o destroço vai ser grande. Se sem nenhum real fazemos o que fazemos, imagina se nos próximos quatro anos comece a rolar recursos (vamos trabalhar para isso). Meu sonho é que quando não tiverem na escola, estejam aqui perto de nós fazendo um mundo de atividades as mais diversas possíveis (dança, teatro, música, circo, literatura, artes visuais) e tudo o mais que existir de artístico no mundo. Lembra dos pés de eucaliptos como portais? Pois é, eu quero que elas tenham a mesma sensação quando se aproximarem do nosso portão.

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Queremos tratar aqui de tudo aquilo que nos adoece como indivíduos e como coletividade. Que assuntos são esses? O que nos fere por dentro e por fora, que nos mata, que nos oprime, que nos constrange, que faz com que nos vejamos como coisa menor e sem importância? Que a Papoco de Ideias seja um lugar para gente se melhorar e melhorar o mundo. Lugar de fala e de escuta, de encorajamento para perder o medo de crescer num mundo tão difícil, mundo esse que trata pobre como se fosse bicho quando nem os bichos merecem um tratamento ruim.

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