ALÉM DOS MUROS
CINEPAPOCO
Bater no portão e ser recebido por latidos de boas vindas dos cachorros da casa que se faz biblioteca comunitária. Como a casa é um pouco distante do portão devido ao imenso jardim composto por tâmaras, amoreiras, rosas, suculentas, qualquer tipo de vegetação, quem faz a função de campainha são os cães. Olho por entre as brechas do portão enquanto apoio o projetor na caixa de som para distribuir melhor o peso enquanto espero o portão da Biblioteca se abrir.
Francisco Moura
*Francisco Moura [@chicomouraf] Coordenador do Arte na Biblioteca, arte-educador e estudante de cinema.
Era o primeiro CinePapoco, a primeira experiência diretamente com as crianças e adolescentes que frequentam a biblioteca. Enquanto montava o espaço, arrumava as cadeiras, regulava o foco do projetor, puxava extensões elétricas para ligar equipamentos; a ansiedade e o receio de não vir ninguém assistir ao filme aumentavam. Rapidamente veio chegando uma após a outra, e umas vinham pra ver se era verdade mesmo que ia ter cinema e iam chamar os outros. Pegamos mais cadeiras, e de repente um pipoqueiro, alguns pais, outras tantas crianças e risos, gargalhadas, olhos atentos, raiva, reviravoltas, indignação, alegria, fim. Enquanto a máquina cinema apresentava na tela preta todos que contribuíram para a realização do filme, um papoco: Powww! A caixa de som começa a sair fumaça. Alguém tem a ação rápida de desligar o estabilizador. O primeiro CinePapoco só poderia acabar com um papoco. Apesar dos prejuízos econômicos, o sentimento era o de consertar o mais rápido possível a caixa de som para daqui há um mês estar experienciando novamente aquele espaço cinema tão modestamente montado.
Uma caixa de som - que talvez só por obra dos deuses do pré cinema tenha aguentado até o final da sessão para depois papocar, já que o usual, como disse o técnico elétrico que a consertou é “de estourar assim que liga errado” - uma lona no chão, algumas dezenas de cadeiras de plástico, um notebook, um projetor e o muro branco da Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias são suficientes pra magia do cinema ser feito.
E vieram sucessivas sessões, com diferentes histórias e a grande máquina de alteridades que é o cinema foi se fazendo presente, fazendo com que cada um passasse a se entender melhor ao ver na tela as angústias e conflitos das personagens, ajudando-os a se colocar de uma maneira mais ativa no mundo, ensinando outras formas de sonhar, como se posicionar em relação ao outro.
Mesmo com as trocas enriquecedoras geradas nos debates do cineclube e todo o carinho demonstrado pelas crianças com o CinePapoco, ainda faltava estar no coração da Papoco de Ideias. O muro em que o cine é projetado é um espaço fora da biblioteca, na verdade é um fora-dentro, pertence à biblioteca e também à travessa Piauí. Era exatamente ali que o CinePapoco estava, nesse fora dentro, ainda não conseguia ser parte da Papoco, tinha que deixar de ser visita, afinal o muro-tela da travessa Piauí tem registrado o número 387 e o portão dessa casa, durante o cinema, está aberto, convidando para entrar no jardim, na biblioteca, na Casa. Do lado esquerdo do muro-tela 387 fica a entrada de um beco onde se enfileiram casas e se estende até um baixio, o mesmo que dá nos fundos da Casa que abriga a Papoco de Ideias. Toda aquela região já foi um pequeno alagado, o terreno foi conquistado pelo braço de homens e mulheres que aterraram e fundaram sua morada, levantam e relevantam suas casas à medida que a vida entre suas experiências de escassez vai permitindo.
Entramos de câmera e gravador no sentimento da Biblioteca Papoco de Ideias quando resolvemos fazer uma oficina de audiovisual com os adolescentes da Papoco, o intuito era de apresentar na teoria e na prática a linguagem audiovisual e deixar os adolescentes livres para capturar registros das oficinas, da biblioteca e do que mais eles quisessem e montar um filme com todo o processo da oficina. Naqueles 5 dias de oficina, conheci a Papoco de verdade. E nada poderia melhor definir a experiência-ação do que dizer que ela foi do papoco! crianças e adolescentes lendo, brincando livremente no jardim, subindo em árvores, descendo no escorregador, jogando futebol, correndo, jogos de tabuleiro, bila, tudo isso junto e misturado. Quanto movimento, quanta ação para ser filmada, quantos sons para serem captados... agora coloque um gravador de som e celulares na mão desses agentes de todo esse fluxo e tá feito o papoco. Claro que tanto fluxo assim tem que ser minimamente ordenado, e todos são responsáveis por essa organização, a construção sobre as regras de comportamento são feitas coletivamente entre eles, quem já está habituado as oficinas já sabe disso, quem tá chegando tem que se acostumar de ser cobrado pelos outros caso não cumpra o combinado. -Tio, o fulano tá falando nome feio comigo e a gente decidiu que não pode! Tá nas regras que tem que esperar a vez do outro, ó - e aponta pra cartolina com as regras de convivência.
Percebo o quanto a Biblioteca é um jardim, talvez seja pela biblioteca se abrir para o jardim, ela é uma extensão dele, pega-se um livro e vai ler lá no balanço, se brinca e lê, se balança enquanto conversa, filma o outro descendo no escorregador, pede pra um amigo correr pra tirar fotos sequenciadas e ensina pra ele que, não veio no dia anterior, “como se faz o movimento dos filmes juntando vários fotos num segundo”.
Essa explicação tão clara e simples mostra a sucessividade do tempo com o estrutura primordial pro cinema - uma cena após a outra, uma foto após a outra, numa sequência, num fluxo – e isso tudo dito no meio daquela simultaneidade de acontecimentos de cada um presente naquele espaço-tempo em que inúmeras ações acontecem concomitante na mesma unidade de tempo.
A Papoco é meio como casa de vó em dia de festa, onde tudo pode, mas não pode tudo. O jardim que é um com a biblioteca também se conecta à casa por um corredor sem porta e lá dentro a vó, D. Celeste; tudo se abrindo pro jardim que vira Biblioteca, um jardim-biblioteca. Nada é mais comunitário em uma casa do que um jardim, espaço de conviver, lugar de vida, um espaço para estar livre, aprender, compartilhar, escutar, ser escutado, ser criança, construir, ter direitos, ter deveres, ser presença frente a ausência de cidadania nesse projeto de Estado exclui a maior parte da cidade. Se o Estado exclui o comunitário inclui, é comuma todos, e todos tem que se responsabilizar, ser comunitária é partilhar, autogerir, gestar. A Casa - que foi fundada sobre o alagado, após entulhos e aterramentos em meio ao suor do trabalho, virou jardim de alimento e cura pelas mãos de D. Celeste junto com o cheiro da água que retorna pro baixio sempre que chove - agora é a Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias, um jardim-biblioteca onde brota cultura, arte, afeto, saber, cuidado, partilha.